Ser-Rio, Deus-Corpo - Sara F. Costa
Ser-Rio, Deus-Corpo - Sara F. Costa
Ser-Rio Deus-Corpo é o sexto livro de poesia original de Sara F. Costa. A poesia da autora de trinta e cinco anos é já um fenómeno que trespassa fronteiras. Os seus textos têm vindo a ser publicados e traduzidos um pouco por todo o mundo, tendo a autora sido convidada para participar em festivais literários em países como Espanha, Polónia, Turquia, Índia e China. O seu livro “A Transfiguração da Fome” obteve o Prémio Literário Internacional Glória de Sant’Anna para melhor obra de poesia publicada em países de língua portuguesa em 2018. Sara F. Costa, fluente em mandarim, publicou uma antologia de poesia chinesa contemporânea por si organizada e traduzida, fruto do contacto com os meandros literários e artísticos de Pequim, onde viveu até 2020.
Em 2021 foi-lhe atribuída uma das competitivas bolsas de criação literária financiadas pela DGLAB (Direção Geral do Livro, Arquivos e Bibliotecas) do Ministério da Cultura Portuguesa. Fruto desse trabalho surge a obra que se apresenta “Ser-Rio, Deus-Corpo", editada pela Editora Labirinto de Fafe que se consolida, há mais de vinte anos, como uma casa de referência na afirmação de novos valores literários da contemporaneidade portuguesa.
As mães que não sabem pegar num carro e parir contra os sonhos. Objetos de vindima, crisântemos imediatos. A arte de se ser puro até se ser paisagem. Uma primavera imóvel ao ritmo das ondas. Então, lá vão elas iniciar uma nova jornada. Vão até às esquinas dos silêncios parir sozinhas. Lá estão elas, incansáveis, infinitas, absolutas, sem autorização para pausas.
Sara F. Costa em Registo Civil (Ser-Rio, Deus-Corpo, Labirinto, 2022)
Em “Ser-Rio, Deus-Corpo" a autora incorpora vários registos poéticos de tradição simbolista, surrealista, imagista e objetivista interpretando a psique e a índole humana a partir do corpóreo.
Na carta que preparou para a candidatura à bolsa de criação literária, a autora apresentou assim o projeto:
“O presente projeto de escrita poética apresenta-se como uma ode à fertilidade. Como as celebrações do Beltane na cultura celta, Ostara na cultura nórdica ou as celebrações do festival Kanamara, segundo a tradição xintoísta japonesa, sendo simétrico a este último, uma vez que é um trabalho sobre a criação intrauterina, do ponto de vista estritamente matriarcal.
Os temas que se relacionam com a maternidade começam a surgir nos movimentos literários ocidentais a partir da década de setenta do século passado, quando surge a segunda onda do movimento feminista. Pretendia-se combater as prenoções que sentenciavam certos tópicos como inapropriados enquanto motivos literários.
A maternidade tardou a ser vista como possibilidade de exposição poética, não apenas devido às justificações do contexto inerente a sociedades patriarcais, mas também porque se situava na esfera privada segundo a conceção filosófica grega de Platão – dicotomia Oikos/Polis - ou, como colocou séculos depois Hannah Arendt, “a distinção entre uma esfera de vida privada e uma esfera de vida pública corresponde à existência das esferas da família e da política como entidades diferentes e separadas.” (ARENDT, 2007, p. 37).
A necessidade de compreender o significado da existência de uma poesia escrita especificamente por mulheres resultou do facto de outras formas de crítica terem assumido quase automaticamente que o poeta é um homem e, por isso, estabelecido como universais os conceitos de vocação poética, tradição e forma que implicam tacitamente normas masculinas.
Na era vitoriana, a poesia escrita sobre “as mães” ganhou uma certa popularidade, não deixando, no entanto, de retratar um ideal de mãe como uma personagem unidimensional, uma mártir e uma “protetora da casa”. Aquilo a que Gertrude Stein chamou “patriarchal poetry” funcionava como um sistema que silenciava as mulheres e as excluía do cânone modernista.
Sobre o papel da literatura na segunda onda do feminismo, a poetisa Sharon Olds recorda a resposta de um editor na década de 1970, quando ela apresenta poesia sobre maternidade: “The editor would say, if you wish to write about your children may we suggest the Ladies Home Journal. We are a literary magazine.”3
Felizmente, as últimas décadas incorporaram uma emancipação de expressão que permitiu às mulheres escreverem sobre a gravidez, o nascimento e a maternidade de uma forma livre, permitindo-lhes explorar através deste tema todos os aspetos da criação literária.
A história da poesia contemporânea em Portugal é a prova da importância da figura da mãe e dos seus filhos e filhas enquanto motivos literários. Autores como Eugénio de Andrade, Florbela Espanca, Fernando Namora, António Osório, Antero de Quental, Carlos Drummond de Andrade, Valter Hugo Mãe ou António Nobre são alguns exemplos de poetas que escreveram sobre as mães e a maternidade. A procura da génese e do sentido existencial é feito a partir das reflexões sobre o nascimento e sobre as mães na poesia de Daniel Faria e Herberto Helder. A mulher e a sua gravidez devem, no entanto, ter palco na primeira mão.
A mãe-poeta não é uma personagem muito presente, a mãe é mais representada por autores masculinos do que femininos. É o objetivo deste presente trabalho trazer a representação da mãe que não precisa de ser representada porque o é. A poeta que é universal, mas é mulher.
O presente projeto foca-se, assim, na experiência intimista de uma mãe durante o período de gestação do feto, incorporando, por vezes, elementos da tradição modernista como a objetividade, intelectualidade, abstração e distanciamento necessários para transformar a experiência em arte. Contudo, nunca abandonando um registo privado, quase doméstico, em que a voz poética procura transcender a casa-corpo.”
Sara F. Costa
Para esta edição, a autora desafiou a artista Constança Araújo Amador a ilustrar a capa.