Minês Castanheira
Cresci no meio dos livros de Sophia, a achar que ser escritor era como ser outra coisa qualquer e que a poesia estava tanto nas coisas como na leitura que se fazia das coisas. Lia-se à mesa, à hora das refeições e sem plano (nacional) de leitura, com os poetas e os contistas todos misturados e ao alcance dos dedos. Havia pouco respeito pelos livros, portanto. Embora o mundo nunca tenha andado à minha procura, como andou à procura de Ruben A., escrevo desde que me conheço.
Quando cresci, percebi que a casa não chegava para guardar todas as histórias. Resolvemos entre amigos, fazer um Bairro inteiro de livros. Não existia e, então, sonhou-se para ser muito nosso. Foi há 11 anos. Estar-lhes-ei eternamente grata. Ficámos a conhecer os nomes às quintas gerações de alfarrabistas, um por um. Batemo-nos por toda a ideia criada, em
face de cada não. As aguarelas da Catarina estendem-nos o inverso do adverso do verso ao sol comprido.
Quando percebi que amava, escrevi-lhe um livro afogado em mar, com versos de navegar à vista. Cheirava à laranjeira da casa onde cresci e negava Fiamma só para dizer Fiamma. Os livros são coisas com que se fazem manifs, bibliotecas, bailes, camisolas poveiras, pequenas revoluções e grandes jantares de amigos. Os livros são lugares a que se volta como se volta a casa. Ou ao Manuel António Pina.
Com os livros que herdei da casa da minha infância — e que a minha filha também herdar — construo castelos pela nossa sala, onde ela possa plantar o coração e a indestrutível leveza de lhes ser livre. Mais importantes do que os livros são as palavras que ela nos inventa. Quando ela nasceu, o escritório da casa deu lugar ao quarto de bebé. Em exílio, eu comecei a cortar versos na cozinha. A poesia está, por isso, em todas as coisas que ainda falta viver.
“A noite ganhando espaço, rodando inteira,
esticando os dedos no esfumado.
Agora tudo se confunde e se estreita, caindo
sob a claridade delimitada
para o interior de um sítio novo no mundo.
No poema ficou o mais secreto.
Como se eu varresse para dentro de mim
silenciosamente
todas as coisas da casa.”
No Princípio Era A Dança (Fresca Ed.), Minês Castanheira.