Uma contra-música: novos escritos llansolianos - João Barrento
Uma contra-música: novos escritos llansolianos - João Barrento
Mais de dez anos passaram desde a edição do meu primeiro livro de ensaios e outros textos em torno da Obra e do universo Llansol (Na Dobra do Mundo. Escritos llansolianos, Mariposa Azual, 2008). A minha relação com essa Obra e o meu conhecimento dela ampliaram-se e transformaram-se entretanto, essencialmente devido ao contacto permanente com o enorme espólio deixado por Maria Gabriela Llansol, que abre sempre novas perspectivas, antes insuspeitadas. A natureza diversa dos textos deste segundo volume deriva do conhecimento desse espólio e sobretudo da possibilidade de a ele recorrer e com ele trabalhar de forma mais sistemática e organizada. De facto, não seria possível explorar, do modo como o faço, toda essa massa de escrita e outros documentos, se o espólio não tivesse sido entretanto por nós inventariado, classificado, digitalizado e indexado, com o trabalho desenvolvido no Espaço Llansol desde 2008. Isto explica a diferença de registos, de abordagem e de conteúdos deste segundo volume de escritos llansolianos.
A natureza díspar dos escritos aqui reunidos (que recuperam também ensaios dispersos por outras publicações) resulta, por outro lado, de um maior número de intervenções públicas em torno da Obra de Maria Gabriela Llansol, umas de fundo, outras mais de circunstância, mas igualmente reveladoras, sobretudo derivadas das inúmeras sessões públicas no âmbito das actividades da «Letra E» do Espaço Llansol, a partir de 2012, e desde 2017 do novo espaço que baptizámos de «Casa de Julho e Agosto», em Campo de Ourique. Por todas estas razões, este será porventura um livro mais vivo do que o primeiro, e certamente mais revelador do amplo espectro de relações que se podem tecer a partir desta Obra – com temáticas tantas vezes inesperadas, com outros autores (poetas, ficcionistas, filósofos, místicos…), com domínios extraliterários (a música, as artes visuais, a iconografia, o cinema), com lugares e tempos de vida e de escrita (a Lisboa da adolescência e juventude, a Bélgica do exílio, os cafés, as deambulações por Colares e Sintra…).
Permiti-me abrir este volume com um texto de Llansol que vem ao encontro das minhas interrogações, sustenta algumas das minhas convicções e me acompanha na humildade de pensamento que este Texto, na sua natureza im-provável, sempre nos pede. A questão é decisiva, e muitas vezes se me coloca: que fazer com este Texto, que destino é o desta Obra que a si mesma parece bastar-se e em si mesma ter o seu fim único? Intrinsecamente, é este o seu posicionamento: escrita que quer valer por si. Mas a sua Autora desde cedo sentiu um apelo-outro, a necessidade de religação que complete o Texto com a chegada ao seu leitor, se possível ao seu legente. Os cadernos de escrita dão inúmeros testemunhos desta vontade de comunicação (e comunidade), e a decisão de criar um Espaço que preservasse esse Texto e o continuasse foi a última manifestação dessa vontade. Foi a consciência disso que me levou a escrever (em reclusão) e dizer (em público) muito do que este volume documenta, tentando perceber melhor o que nesta escrita se manifesta e o que ela, no modo original de dizer que é o seu, tantas vezes apenas sugere. A «Carta de abertura» que escolhi para abrir este livro é também uma carta de princípios que, no paradoxo que subjaz às suas posições claras e à sua ambiguidade de fundo, legitima o muito que sobre esta Obra fui escrevendo ao longo dos últimos dez anos, agora conhecendo-a melhor do que nos ensaios do primeiro livro, em particular no muito que transparece por detrás da superfície especular e do palimpsesto que são os livros publicados por Maria Gabriela Llansol, nossa única fonte de referência e território de trabalho antes da descoberta do espólio. E não se trata apenas de chegar mais perto desse objecto trivial de curiosidade a que se chama a «oficina de escrita» – é muito mais do que isso, porque a escrita de Llansol não é produto mecânico de «oficina», é um magma espesso, contínuo, fervilhante e imprevisível que põe a nu corpo e alma, o olhar e todos os sentidos de quem escreve, para chegar a isso que ela define como «a arte de expor, em beleza, a própria consciência». Foi isso que entendi melhor nestes anos, é disso que este livro procura dar conta.